Refém franco-português no Mali: Dois anos de incógnitas
19-11-2014
Gilberto Rodrigues, 62 anos, natural do distrito de Leiria (Portugal), nutrira desde sempre um especial interesse por África. Foi educador especializado no acompanhamento de crianças com deficiência até 2008, quando se reformou. Em 2012 decidiu conhecer África na «primeira pessoa». Uma experiência de tal forma poderosa e rica, que decidiu regressar no mesmo ano.
No fim de Outubro do mesmo ano, parte solitário de França no seu «camping-car» com destino a Lomé, Togo. Uma viagem que previa atravessar Espanha, Marrocos, Sara Ocidental, Mali, Burquina Faso, Gana e finalmente Togo. Um percurso com um risco inerente e que para o qual Gilberto Rodrigues não era alheio. Por esse motivo, disse com frequência aos seus familiares mais próximos que, se a sua viagem se revelasse «arriscada», ou que pudesse pôr em perigo a sua vida, não hesitaria em abandonar o projecto.
Durante todo o trajecto até ao Mali, Gilberto Rodrigues foi informando a família, via SMS e e-mail, sobre os locais por onde passava, assim como o que projectava fazer nas horas ou nos dias seguintes. O teor dos SMS revela uma viagem sem percalços e com múltiplos encontros com as populações locais. Gilberto Rodrigues nunca gostou de viajar como «turista», sempre preferiu o «genuíno» e o contacto directo, evitava os grandes centros urbanos, privilegiando as pequenas aldeias e cidades anódinas.
A 19 de Novembro envia um SMS onde disse estar em Kiffa, a cerca de 400 quilómetros da fronteira maliana. Na mesma mensagem transmite que lhe garantiram que tudo «está seguro» mas que se sentisse algum risco não hesitaria em «dar meia volta». No dia seguinte enviou uma mensagem de Diéma, Mali, onde informou os familiares que as autoridades garantiram que tudo estava seguro e que aguardava apenas que a Embaixada do Burquina Faso em Bamako, capital do Mali, lhe concedesse o visto para prosseguir a sua viagem. Poucas horas depois, Gilberto Rodrigues é raptado por seis homens armados. Cinco dias depois, o MUJAO publica um vídeo na internet onde reivindica a autoria do rapto.
A situação no Mali entretanto altera-se radicalmente. Beneficiando de um exército maliano que mergulhara num caos após um golpe militar, o norte do país é ocupado por forças islamistas radicais próximas da Al-Qaeda. Face à progressão das forças islamistas, Paris decide intervir pondo em campo a Operação Serval que, oficialmente, a partir de 11 de Janeiro de 2013, provocou uma retirada das forças e aliados da Al-Qaeda.
Apenas onze dias após o arranque da Operação Serval, o alegado porta-voz do MUJAO, Walid Abou Saharoui, anuncia que o seu movimento está disposto para negociar a libertação de Gilberto Rodrigues. A 26 de Janeiro Abou Saharoui reafirma a intenção do seu movimento, mas Paris responde, através do então primeiro-ministro Jean-Marc Ayrault e do ministro da defesa Jean-Yves le Drian, que a França não quer «participar em lógicas de chantagens», recusando qualquer tipo de negociação.
A resposta à posição francesa surge a 7 de Fevereiro, quando Walid Abou Saharoui declara que o seu movimento não está mais na disposição para negociar a libertação de Gilberto Rodrigues. A partir deste momento, o MUJAO mergulha num silêncio total e os serviços de segurança franceses perderam o rasto do franco-português, tal como reconheceu o presidente francês no início de Dezembro de 2013 à família Rodrigues.
Segundo a versão oficial francesa, a Operação Serval conseguiu reconquistar aos islamistas o norte do Mali, mas, colateralmente, provocou o dispersar das forças jihadistas na região e uma reorganização dos rebeldes em moldes que Paris não previa. Um cenário que a França minimizara durante a elaboração da estratégia Serval e que resultou num corte súbito dos canais «clássicos», que permitiriam estabelecer uma linha de comunicação para a negociação com vista à libertação dos reféns ocidentais no país.
A Operação Serval criou também uma nova «morfologia» dos movimentos rebeldes na região. Assim, o MUJAO, suposto responsável pelo rapto de Gilberto Rodrigues, é um movimento estruturalmente diferente daquele que actuava quando a operação arrancou.
Apesar de a França declarar oficialmente que não paga resgates para a libertação de reféns, a realidade é outra. A maioria dos reféns franceses foi libertada mediante o pagamento de resgates.
Por outro lado, o Eliseu e o Quai d´Orsay (Ministério dos Negócios Estrangeiros francês) têm aplicado uma estratégia de comunicação relativamente aos seus reféns que torna dramaticamente previsível a sucessão dos acontecimentos. A comunicação estatal alterna uma boa notícia com uma má notícia. Assim, depois da libertação dos quatro reféns franceses de Arlit, funcionários da Areva, em Outubro de 2013, após 1139 dias de cativeiro, François Hollande confidencia à família Rodrigues que a França não tem qualquer informação sobre Gilberto Rodrigues.
E, logo após a mediatização da libertação de quatro jornalistas franceses reféns na Síria, a 19 de Abril de 2014, o ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Laurent Fabius, disse que estava «muito preocupado» com a situação de Gilberto Rodrigues. Apoiados em estranhos comunicados de difícil verificação, a 22 de Abril é anunciada a morte de Gilberto.
Um anúncio oficializado pelo Quai d´Orsay e pelo Eliseu que não é claro e deixa sempre pairar dúvidas quando reconhecem que não têm provas físicas da morte de Gilberto Rodrigues. Um jogo de palavras que se tornou insuportável para a família Rodrigues.
Em Setembro de 2014, o rapto e decapitação de Hervé Gourdel na Argélia, pelo recém-criado grupo Jund al-Khilafa aliado ao Estado Islâmico, provocou uma gigantesca vaga de emoção em França. A recusa categórica e imediata da França em negociar com terroristas determinou a execução imediata de Gourdel.
A 17 de Novembro, um ramo da AQMI no Mali difunde um vídeo do refém francês Serge Lazarevic. Uma prova de vida há muito esperada, mas preocupante porque Lazarevic, numa declaração nitidamente construída pelos seus raptores, afirma ser o «último refém francês», afastando assim a hipótese de Gilberto Rodrigues ainda estar vivo. Consequentemente o impacto positivo da «prova de vida» Serge Lazarevic poderá determinar um anúncio dramático relativo a Gilberto Rodrigues.
Desgastados, com dois anos de impasses, incógnitas e contradições, Gervaise, Irène, Annie, Alain e David, irmãos de Gilberto Rodrigues, emitiram um comunicado dirigido aos raptores de Gilberto e, particularmente a Sultan Ould Bady, que supostamente será o responsável pela detenção de Gilberto Rodrigues.
No mesmo comunicado/carta, a família Rodrigues pede directamente explicações a ould Bady: «Para que serve a sua [Gilberto Rodrigues] morte se esta permanece em segredo? Para que serve o seu sacrifício se ninguém em França sabe o que lhe aconteceu? O Estado francês acredita na palavra de alguns moudjahidines [combatentes] detidos, mas nós não acreditamos!»
Rui Neumann
Comentários (X)